sábado, 15 de agosto de 2009

O pecado mora ao lado, o perdão também.

                                                            Magno aquino

O pecado existe sim; espreitando, enleando, seduzindo.
O perdão existe sim; aliviando, desadoecendo, enlevecendo.
Pecado e perdão não são abstrações teológicas.
O pecado existe. Enquanto ato, cometemos, repetimos, reincidimos, chutamos o balde até sussurrar um semi-surdo pedido murmurante. Pecado adoece e quando é fato cometido aloja-se e cria raízes, cria caule, folhas, frutifica para o mal. Pecado pesa, prostra, tolda; faz a gente olhar pro chão. Pânico de dedos em riste. Pecado parece doença ruim (na minha terra classificamos as doenças moralmente, DST é doença ruim), parece que é pra sempre, que tem que aprender a conviver com, que é melhor pecar mais só pra ver se alivia um pouco... Mas não alivia, só parece.
Tentação depois que vira pecado perde o cheiro bom e o jeito bonito. Dói e fede.
O perdão existe. Perdão faz bem. Desfaz o mal, anula o mal, desencadeia o bem.
Só que entre perdão e pecado não tem convivência, não há acordo. Um tem que sair; perdão é resultado de arrependimento, desses de verdade. Tem sentimento confuso que se parece com perdão, mas não é, é remorso, que não traz nem faz bem. Traz morte, assunte na Bíblia... Iscariotes. Agonia.
Arrependimento existe, é quando Deus acha uma brecha em nós, inexpugnáveis malfeitores de nós mesmos, e enfia sua luz; aí, pasmos nos vemos como somos, como estamos. Somos e estamos entulhados.
Perdão de Deus é imediato, perdão de nós requer tempo; quem se atreve a se contemplar em pecado quando já não há a adrenalina do pecado? Quando o ofegante brilho do diabo já se foi? O brilho e a adrenalina que precedem o pecado se esvaecem pra deixar só uma desesperança covarde; o inebriante cheiro e o incomparável sabor sempre dão lugar ao desumano espetáculo de almas falidas. Íntimo horror.
Quando o que era formigante possibilidade se torna fato já não é mais formoso ou doce. Desagradável aos olhos, asqueroso ao toque; inconveniente hóspede.
Se não me arrependo, me perco, sinto só remorso e me arrisco à corda de Iscariotes por instantes. Morro um pouco em mim pra Deus; ou morre um pouco de Deus em mim? Dou-me por perdido.
Mas sou crente, a palavra não me é estranha posso olhar pra cruz. Posso abrir a alma e a boca e pedir socorro, e o socorro vem, o alívio vem, o perdão vem.
O pecado existe, o perdão existe. Conhecendo os dois, eu escolho não pecar.
Abençoada escolha!

(ex-interno do centro de recuperação de mendigos – Missão Vida)

Eu, interno.

                                                                                                       Magno Aquino ______________
   
Jamais me sentira tão desamparo com naqueles 16 de março; meu primeiro dia como interno no centro de recuperação de mendigos da Missão Vida. Em nenhuma outra ocasião, nem na prisão, odiara tanto gente ao mesmo tempo; desesperei.
Não pude suportar a entrevista, o quarto 18, os outros internos, o jantar, o culto; eu perdera. Fali em todas as minhas tentativas de ser feliz sem Deus; nada de bom pra recordar. Um derrotado de volta à casa de Deus, meus juramentos, todos eles estavam quebrados; de volta à presença d’Aquele que eu tentara ignorar.
À noite, no quarto 18 eu entendi o porquê da frase: “Passar um filme em minha cabeça.” Naquela noite tive sessão dupla; falar pelos outros internos não posso, mas afirmo que o primeiro pensamento geral é: “Como vim parar aqui?” E o filme em nossas cabeças, certamente tem dado respostas contundentes, desconcertantes.
Longe de dizer que me desapontara com a Missão Vida, tudo aqui é pensado visando o conforto e a praticidade, nada está fora do lugar; é quase a nossa casa, guardadas as proporções. Aqui é possível passar a noite quase em paz. 
Não era a Missão Vida o problema, mas eu, e a minha vida sem meio e, quase no fim. Minha dolorosa tarefa era tentar compreender a minha própria trajetória, começando no dia no qual engoli dois comprimidos, uma dose de run, e jurei que era o dono do mundo. Assim resumi: Viciado, ladrão, cobrador do tráfico, cão de guarda... Crente, estudante, cinegrafista, evangelista, seminarista, missionário... Relapso, arrogante, soberbo, alcoólatra, mentiroso, desempregado, ladrão, mendigo... Ladrão de mendigos. –
Era muito, era demais para os meus 38 anos, alguns destes sendo crente; era pra arrumar a trouxa e me mandar, “Nem o Deus da Missão Vida podia me ajudar!” Aquilo tudo, aquele papo de perdoar deveria ser bom pra outros; não servia pra mim. Passei.
Era tão perdedor que nem mesmo o afeto do pastor Arnaldo, a paciência amorosa do pastor Domingos e o amor exigente e cheio de broncas do pastor Antônio Silva me faziam reagir. Aquilo parecia não ter futuro.
 Tentaram encaixar-me na construção civil, mas eu não conseguia erguer a lata de 20 quilos. Valentemente resisti por três dias; compadecida, Dª Cleide me mandou varrer o chão, serviço leve, mas a sensação de “espaço aberto”. Tremia em lugares abertos.
Insone, dependente de 19 comprimidos/dia em troca de duas horas de sono ruim; arrastava-me. Passar o dia no arrozal espantando passarinhos da plantação era a minha terapia, e começava, sem que eu percebesse, a tornar-se a mão de Deus em mim.
O pavor que nutro por cobras me fez pensar em orar, nunca orara com responsabilidade, mas eram tantas as cobras que apareciam no arrozal, que “Só Deus na causa!” E então fiz aquilo que era meu costume: li todos os livros sobre oração; só não orei.
Até encontrar uma cascavel, eu e ela, e o tenebroso guiso, (mamãe disse que é chocalho) e não tive escolha, orei como nunca orara antes e não sei de onde arranquei coragem, e matei a cascavel. Foi um evento! Guardei a cobra, depois esfolei a dita cuja, guardei o couro (me furtaram o couro) e dei o guiso pro Joninhas chaveiro, e jamais fui tão grato a Deus.
Assim eu descia todos os dias, orando em voz alta; por estes tempos o pastor Arnaldo me visitou no arrozal, foi o gesto mais carinhoso e amigável que me lembro; eu era um restolho, complicado até pra falar, e ele ficou ali, quis ouvir e ouviu a minha história, e disse coisas que só o coração de pai que só ele tem poderia dizer. Quando se foi, deixou um homem transtornado.
Procurei minhas raivas, ressentimentos e, nada. Até do pastor Antônio Silva eu começara a gostar, e da Dª Joana; no início era impossível não sentir raiva deles, meu coração se fechava cada vez que os encontrava, olhava pro chão e seguia; um sentimento de revolta me invadia, sempre.
Após o culto final do retiro de homens daquele ano (leia: A despeito de nós – 26/02/2009 – nesta seção) eu simplesmente passei a orar, simples assim, o episódio com a cascavel despertara-me quanto à necessidade de orar, mas agora eu sabia que sem oração não iria muito longe. 
Poder afirmar, sem rodeios, que sou um milagre custou caro; ao Cristo custou a cruz; custou-me entender, crer, querer, submeter. Sou um milagre não por deixar de beber álcool combustível, roubar ou mendigar somente, mas por deixar de ser otário e aceitar que, sem Deus eu nunca fui nem serei alguém que valha algo. Deus me ama!
Nesta hora nada é mais importante do que tentar expressar gratidão! É isso que tento agora, ser grato a Deus, dizer isso a Ele, totalmente sem jeito já que não aprendi a mostrar gratidão nos seguidos anos de vício e roubo e violência; ser grato ao pastor Wildo por ter atendido o chamado de Deus e dedicar sua vida, toda ela a cuidar de gente como eu. Ser grato aos que nos alimentam na Missão Vida enquanto somos recuperados pra um dia, poder voltar pra casa. 

(ex-interno do centro de recuperação de mendigos – Missão Vida)

http://www.mvida.org.br