quinta-feira, 16 de julho de 2009

Eu venho como estou... parte final


Os exames que o médico pediu ficaram prontos; fiz, não tinha ânimo pra discutir com ele, e precisava parecer bem, eu gostava da crente, mesmo sabendo que iria embora. Urinava com dificuldade e respirar era uma tarefa ingrata. Ficaria melhor em Montes Claros.

Ir embora significava reencontrar um monte de pessoas com as quais eu não queria encontrar; Corjesu, meu irmão mais velho me encontrou em frente ao BB, quase morto, overdose de “algafan” moído e injetado; a noite inteira tentando me reanimar; nos últimos dois meses foram seis paradas. Isso, e o pó de anjo. Suicídio.

Voltar pra casa era estranho, mamãe não sabia de nada, ou quase nada, jamais fora a uma cadeia me buscar, nem hospital, nem qualquer outro lugar; se tivesse que envergonhar minha mãe, se ela tivesse que passar vexame, morrer era melhor. Não era amor igual ao que os crentes sentiam pelas mães deles, mas era, acho que era. Ou era medo de desapontar mais.

Ficava tendo pesadelo com a carinha de mamãe, triste me olhando; fazia-me bem achar que ela pensava em mim, até falava: ”É melhor ter cuidado pra não chatear mamãe, ela é brava, fecha o tempo comigo se eu vacilar!” Às vezes bandido fica assim, “doidin” pra alguém se importar com ele, se for mãe então, vich!

“quantas vezes, eu chegava em casa, era garoto, e se mamãe não estivesse acordada, pra falar que: “Cê ainda vai me ver morta! Qualquer hora cê me encontra no chão!”Que estava sentindo “uns trem no peito” e que se morresse, não queria nem que eu fosse ao enterro... Eu ia dormir contrariado: “Ave cruz! Nem ta nem aí se chego vivo ou morto, depois fala que me ama, que isso, que aquilo... Falô, então ama né?”

Era por causa da lembrança do nome das mães que não desandava tudo, volta e meia alguém gritava: “Pelo amor da sua mãe!” E isso sempre atrapalhava; botar nome de mãe na conversa nunca deu certo.

As viagens agora eram raras, eu procurava ficar na cidade a maior parte do tempo, até estudava com o Davi, um crente batista que era colega na escola agrícola, detestava o papo de crente do Davi. Roubaram o dinheiro do crente e a culpa caiu em mim, eu não roubaria um crente.

Com os remédios a aparência melhorou, ia sempre à casa da família da namorada crente, ainda era confuso conviver com eles, riam demais.

Ir a igreja já deixara de ser motivo de gracejos, só mesmo quando tínhamos algum compromisso maior é que eu faltava; dizia ao contato do barão que era um bom álibi caso as notícias das cargas se espalhassem, alguns motoristas estavam nervosos; minha dívida com o barão já estava quase quitada.

Não odiava mais os crentes, só não entendia nem acreditava no negócio de levantar a mão. E a idéia de morar com Deus no Céu era muito cabulosa. E Deus lá ia querer saber de gente da minha laia?

“De manhã saímos da igreja e fomos visitar gente doente; todo dia os crentes arranjavam gente pra visitar, e orar; descobri que os crentes, se não estivessem rindo, é porque estavam orando. Todo dia tinha um doente pra visitar, e orar.”

À noite eu deixei minha mochila pronta, iria à igreja, e de manhã, antes que as coisas piorassem, nós estaríamos a caminho da Rio - Bahia, última entrega, acerto de contas e adeus. Era mais seguro não estar por ali quando a polícia da capital chegasse, ser encontrado com a crente seria ruim pra ela. Ser preso na frente dela seria ruim também.

Apocalipse 3: 20, e a história do quadro com o coração desenhado, aí chega o crítico de arte e desata a por defeito na pintura, e reclama que a porta não tem fechadura, até o artista explicar que aquela porta só seria aberta por dentro... Já contei essa parte em outro artigo.

O que não contei foi o quanto aquela historinha simples me atingiu, foi um estrago, seria capaz de jurar que jamais ouvira uma coisa tão linda, e cada palavra daquele homem era mais desejável que a outra, pensava em minha situação e desesperava, devia sair dali, mas esperava mais uma frase, e mais uma frase, só mais uma frase.

Estava irremediavelmente encantado com tudo que ouvia, ouviria até de manhã, como eu queria que aquelas palavras fossem pra mim! Pensava: “Porque não falam assim comigo? Se as pessoas escutassem isso, seria diferente!” Jesus era, naquela hora, do jeitinho que a música falava que era... “Oh! Vem! Sim, vem! Não te demores, vem já.” Como, naquele momento, eu queria ser como os crentes! Até ensaiaria um riso! “Eis bate à porta, paciente esperando, e chama: Ó pecador vem!”

Eu ficava ali parado e tremendo e já chorando e agonizava; “Será que esse infeliz vai esquecer, logo hoje de mandar levantar a mão? Do jeito que crente não me suporta é capaz dele não mandar levantar a mão, e aí, o que eu faço?!”

Quando dispararam: “Eu venho como estou...” Eu não quis mais saber se ele ia mandar levantar a mão, caminhei lá pra frente, nada poderia me impedir de levantar a mão, seja lá quais fossem as conseqüências. Naquela hora eu só queria levantar a mão.

Lá, perto do moço do supermercado que falava coisas da Bíblia, eu fui como eu estava, pra nunca mais ser como eu havia sido até então.

A arma incomodou na cintura, eu era um “bíblia!”

Magno Aquino - missionário

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Eu venho como estou... 2ª parte

“Crentes, tenho certeza, são combinados entre si, quando encasquetam com alguma coisa; perseguir alguém, por exemplo...”

Agora era assim, eu cada vez com problemas maiores, a polícia, concorrentes, outros cobradores. Mudava de cidade. Cada cidade pior que a anterior, e pra piorar não importava a distância ou o tamanho da cidade, uma coisa era certa, os crentes.

Na verdade eu não sabia dizer se sempre existiram tantos crentes no mundo e eu não notara antes, ou de uma hora pra outra brotavam crentes como brota o mato no cerrado após uma chuva. Também podia ser trauma, a experiência ruim na “toca do demo”, ou melhor, pracinha dos crentes. Era escurecer e pronto, daí a pouco eu encontrava uns crentes, se combinasse pra encontrar não daria tão certo! “Já refulge a glória eterna...” Parecia praga.

Podia dizer até em qual parte do culto eles estavam, dependia da música, isso eu sabia, dependia da música! Eu sabia. Só o lance de levantar a mão é que eu não entendia ainda.

Às vezes ouvia parte da fala, e cada vez mais odiava os crentes, recebia o folheto só pra embolar e jogar fora, lia alguns, só por ler; “fácil falar de paz, não estavam a centenas de quilômetros de casa (às vezes eu me lembrava de casa, e de mamãe.). Podiam falar de esperança, não estavam em fuga! Não corriam o risco de “rodar”, ou dar de cara com o carniceiro.” Eu estava devendo, pagavam bem pelo meu couro.

“Eram mentiras, aquilo tudo, só mentiras. Ninguém podia ser daquele jeito, feliz. Não existia lugar daquele jeito, gente daquele jeito, Deus devia ser bom, mas era para os crentes.” Torturava-me. “Bandido não fica velho, morre antes.” Vivia esperando, sempre. “Como alguém podia ser crente? Eu não cairia numa conversa daquelas!”. “Era bom demais, não era verdade.”

Agora eu vivia às voltas com os crentes, até na gang tinha o “aleluia”, um crente, filho de crente, desviado; era o meu trunfo, a prova que eu procurava; se vida de crente prestasse um crente não sairia da igreja dos crentes pra virar ladrão e cão de guarda! “Ah, na primeira chance eu o esfregaria na cara do pastor! Só pra ver aquele sorrisinho fugindo-lhe da cara!”

Observando o quanto “aleluia” sofria lembrando o tempo de crente ocorreu-me arranjar um jeito de dar drogas aos crentes, no colégio; um monte de crente, viciados e sem dinheiro pra comprar mais drogas e então um monte de crentes ladrões, prostitutas, cães de guarda... Colossal vingança. O fim dos crentes. Mas foi só um pensamento. Pensei, e estremeci.

Vale do Jequitinhonha, saíra apressado da cidade anterior.

Nenhum amigo no colégio agrícola. Era preciso estampar o meu “crachá de otário”, não chamar a atenção. Apesar de ser um colégio interno (EAF) havia um grande número de viciados, gente pequena, fumavam maconha que plantavam nos arredores da escola ou compravam pequenas quantidades na região.

As coisas mudam...

Era madrugada quando retornei ao colégio, à base de “algafan” passara os três últimos dias, voltava de Taiobeiras, encomendas do barão. Assisti às aulas na horta. Dia comum e ruim. À tarde, escondido nos últimos bancos do ônibus que levava os professores de volta à cidade, ouvia a conversa dos semi-internos, tomavam optalidon, cheiravam loló, lixo forte.

Na cidade fui apresentado a uma crente, aliás, fui apresentado a várias pessoas, todas sorridentes; por se tratar de uma crente eu dediquei-me a olhar somente pra garota, não olhava pra mais ninguém, e o sorriso não era assim tão irritante, era até bom de olhar. Não senti vontade de arrancar-lhe o sorriso, isso não! Era um belo sorriso. Aquele sorriso me descansava.

Presbiteriana! Não sabia o que significava, mas que era uma bela palavra, isso era. Presbiteriana!

Agora eu sempre falava com a irmã, até o começo do namoro eu sempre me referia a ela por: a irmã! Eu, fugitivo de tantas coisas, namorando uma crente, improvável, impensável, mas era a verdade. Namorava uma crente.

Até ir à casa da namorada crente (sim, fui conhecer a família crente da namorada!) eu não tinha uma noção clara do que era viver em família; lá em casa mamãe lecionava nos três turnos e ainda costurava. Sustentar-nos, educar-nos, rigidamente. Prioridades.

Sofri um choque, aquelas pessoas rindo, e comendo e falando e rindo mais. A atmosfera me apanhou de surpresa; rir, marca daquele povo estranho. Voltaria ali muitas vezes, mas nunca ia chapado ou armado, difícil era conviver com a alegria deles, nunca discutiam, não gritavam, nunca reclamavam. Já não odiava muito.

Fui à igreja; fora as partes que eu já sabia eles me mandaram ficar de pé e eu fiquei de pé. Não sei dizer o porquê de obedecer e ficar de pé. Só fiquei.

Com todos os problemas que carregava, e com a saúde em péssima situação, decidi ir embora, as coisas dando errado, e eu sentindo inveja da vida dos crentes. Era hora de voltar para a boca do inferno. Habitat. Segurança.


Sem rima, nem modos

Se dependesse de mim

Raptar-te-ia

Ainda hoje

Cativeiro no ermo

Castelo de fada

Torre de Rapunzel

Se por minha vontade se movesse o mundo

Só eu te acharia

Cedo ou tarde

Todas as horas

No mesmo lugar

Em mim

Morada e abrigo

Mas não depende de mim

De ti depende

Dependo

Até quase rimo

Pra chamar teus olhos

Pra olhar pra mim

Repetitivo e chato

Ensaiando versos

Que a ti nada dizem

E se dizem

Bem disfarças

Pra me ter sofrendo

Arriscando o mesmo verso

Sem pontos

Nem vírgulas

Sem exclamações

Nem reticências

Sem rima

Nem modos

Magno Aquino